07 maio, 2010

Olho Por Olho

Hoje terminei de reler o livro "Estação Carandiru" escrito pelo Dráuzio Varella.
O livro é muito bom. Revela muitas vertentes do sistema prisional brasileiro e é cheio de histórias narradas com o olhar atento e detalhista do Dr. Dráuzio.

Segue um capítulo do livro:

Have Fun Kids!
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Charuto entrou com o dedo enterrado numa cebola cozida. A mão esquerda amparava a outra; nesta, os dedos estavam dobrados, com exceção do indicador, esticado, a metade distal introduzida num túnel aberto na cebola quente, de sair fumaça.


Sentou-se à minha frente, com cara de dor, e desembainhou o dedo ofendido. Estava bem inchado; na ultima falange, logo abaixo da linha de inserção da unha, havia dois cortes profundos, transversais, simétricos em relação à linha média, no meio de um hematoma pulsátil.

- Mordida de rato?

- É, doutor, atingiu o osso

Ratos de várias raças infestavam o presídio. No escuro, circulavam pelas galerias, corredores e interior das celas. Na Cozinha Geral, após a distribuição da janta, mal os faxinas acabavam de enxugar o chão esburacado, o exército murino invadia o território e saqueava a dispensa. Ao clarear do dia, inimigos da luz, escondiam-se nos esgotos até cair outra noite, inexpugnáveis.

- Foi meia hora atrás

- Mordida de rato de dia?

- Estava trabalhando, ó, doutor, desentupindo aquele esgoto que entope no pavilhão Dois, quando aconteceu o acidente.

Charuto tirou a tampa de ferro que cobre a abertura do esgoto que sempre entope, em frente à fachada do Dois. O buraco estava até a boca de tranqueira e comida velha boiando. Desceu naquela água imunda, até os joelhos, e começou a tirá-la com um balde. Quando a manilha grossa apareceu, Charuto enfiou a mão pela lateral, para retirar um saco plástico que atrapalhava o desentupimento. Neste momento sentiu uma dor lancinante, assim descrevia:

- Pegou horrível na ponta do dedo, fina, ardida, e espalhou como um choque pelo braço; deu até amargor na boca.

Puxou a mão, no reflexo; veio junto o rato pendurado no dedo indicador, mordendo fixo. Era preto, enorme:

- Pensei até que fosse um cachorrinho desses de madame.

No desespero, a mão desenhou um circulo no ar e bateu o rato contra o cimento, mas a pega estava tão firme que não soltou. Infernizado com a dor que até choque dava, o rato travado no osso, Charuto levantou o braço o mais alto que pode e despencou o animal no chão; com toda força.

- Só ai, com o perdão da palavra, foi que o desgraçado largou, ficou esperneando as patinhas pra cima.

- Morreu?

- Que nada, doutor, o bicho é o demômio!

Foi então que Charuto, cego de ódio, agarrou o inimigo com as duas mãos, segurou-lhe a boca para não levar outra mordida e vingou-se:

- Cravei os dentes na mente do infeliz. Mordi duro, até ele parar de debater. Depois escovei os dentes e, já era.



Extraído do Livro: Estação Carandiru, por Dráuzio Varella
2003 - Ed. Schwarcz
2º Edição

1º Reimpressão

Um comentário:

  1. Paulinhooo..

    Tá ficando desatualizado isso aqui hein rs..

    Bora escrever rapaz... Gosto de ler suas loucuras. :)

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